Quarta Buarque é mais uma iniciativa jornalística subversiva deste projeto editorial, que já abre espaço para literatura e outras ataduras, em rima pobre, de propósito. Todas as quartas-feiras, o blog vai publicar uma crônica inspirada nos versos do cantor, compositor e escritor genial, Chico Buarque. O filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda é parte fundamental de uma infância que foi narrada em um escrito autobiográfico sobre o pai desta que agora escreve: “Aos 7 anos, ele me convocava, solene, para ouvir sua interpretação de Pedro Pedreiro, O que será (À flor da pele) e outras arquiteturas poéticas buarquianas que desafiavam a gravidade da minha tão recente existência”. O gênero foi adotado pela publisher, há alguns anos, com o lançamento oficial de seu primeiro livro Palarvas e Borboletras (ed. Vias de Fato), publicação que traz o texto de estreia desta série. Abaixo a crônica Poesia no Chão:
Poesia no chão
As Vitrines, de Chico Buarque, é a trilha sonora que embala esse domingo úmido em mim. Uma delicada melodia emotiva contrasta com os gritos enlouquecidos dos aficionados por futebol, esporte pelo qual nutro uma indiferença siberiana. Aconchegada a mim mesma, ouço apenas a música no meu interior: “…passas sem ver teu vigia, catando a poesia que entornas no chão”.
Ainda nos primórdios das minhas aventuras inconfessáveis, cheguei a rascunhar um poema infantil, tosco, escrito com alma dilacerada como letra de tango, no ano que chamei de Mil Novecentos e Noventa e Triste: “reciclando desejos, intenções… do meu lixo interior ao papel da poesia”. Agora, a reflexão inversa questiona o porquê de tantas possibilidades preciosas serem desperdiçadas, menciona os alquimistas fracassados que, ao invés de transformarem metais em ouro, fazem “diamantes virarem pedaços de vidro”.
Prefiro os desertos que florescem, as lágrimas que salgam a boca, que mais tarde sorri. Sou regida pelo signo da mutação, da transformação. Sou jornalista por paixão e convicção de acreditar numa folha em branco que, aos poucos é preenchida por caracteres, capaz de influir em decisões e até mudar destinos.
A mim fascinam as tintas que dão vida à tela vazia e provocam fantásticas experiências estéticas. Percebo na dádiva de viver o imperativo da renovação, desde a pulsação do oxigênio e das veias que nutrem o organismo incessantemente. Sou adepta da ressignificação dos acontecimentos que não se aprisionam em um ponto final, mas que descortinam novos capítulos, como na fábula erotizada As Mil e Uma Noites.
Incomoda-me o fracasso dos que não foram, entristece-me a morte do que não chegou a nascer, as cachoeiras que deixamos secar, a poesia que tantas vezes jogamos no chão e “o amor que resultou inútil”, como no lamento drummondiano.
Os gritos lá fora aumentam. O jogo acaba. Dentro mim, Chico continua cantando: “Te avisei que a cidade era um vão, dá tua mão, olha pra mim, não faz assim, não vai lá, não...”