No descompasso da folia de opiniões, os ressentidos com a vitória do filme “Ainda estou aqui”, no Oscar 2025 de Melhor Filme Estrangeiro, andaram confundindo história com “ideologia”. Em meio às fantasias de versões sobre o período ditatorial brasileira, houve quem preferisse se esconder no armário da Direita e criticasse outros aspectos da produção do diretor Walter Salles, protagonizada pela atriz Fernanda Torres, para disfarçar seus trejeitos conservadores.

Sou de uma geração formada por uma maioria que só foi entender (e estudar) a Ditadura Militar brasileira nos bancos universitários, com obras de inquestionável teor, a exemplo de “Brasil: Nunca Mais”, prefaciada por Dom Paulo Evaristo Arns, um relatório documentado a partir de março de 1979, sobre os horrores e arbitrariedades praticados pelo regime autoritário no país. Outras mais leves, em gênero jornalístico-literário como “1968: o ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, representavam para nós um facho de luz que as escolas de então não ousavam acender.

Com emoção ainda lembro, no curso de Comunicação Social da UFMA, a expressão da professora Nilde Sandes, promotora de Justiça, narrar seu choque diante da leitura de “Brasil: Nunca Mais”. Era uma Aula de História sobre um país violado à exaustão em seu ordenamento jurídico, coberto por uma cortina de sangue jorrando dos porões militares. Anos antes, o filme “Pra Frente, Brasil”, de Roberto Farias, protagonizado pelo irmão Reginaldo Farias, mostrava o outro lado das comemorações da Copa de 70, e do falso milagre econômico cujo pecado é pago pelos governos até os dias de hoje.
Mais recentemente, a coleção de Elio Gaspari, da série As Ilusões Armadas, publicada no início dos anos 2.000, com “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Envergonhada” e “A Ditadura Derrotada” passou a ser a melhor opção para quem não quisesse passar a vergonha de ser derrotado por uma verdade histórica escancarada.
Com a polarização da atualidade, é óbvio que um filme retratando um assassinato emblemático, entre tantos ocorrido durante os Anos de Chumbo, provocaria os ânimos nacionais, mesmo em meio à maior festa popular do país. A repercussão do prêmio mundial provocou até mesmo uma nota pública emitida por um tal “Instituto Brasil pela Liberdade (?)”, cujo teor se aproxima mais da comédia do que do drama, aqui reproduzido:
É com profundo pesar que recebemos a notícia da vitória do Oscar do filme “Eu Ainda Estou Aqui”, uma obra que, sob o verniz de arte carrega em seu cerne uma clara agenda de propaganda comunista.
Longe de ser uma celebração da criatividade ou da expressão humana, esse prêmio representa um triunfo amargo para aqueles que buscam instrumentalizar a cultura em prol de ideologias opressivas.
O que deveria ser um momento de reconhecimento artístico transforma-se em uma ferramenta nas mãos de um regime que não hesitará em utilizá-lo para ampliar e solidificar sua influência, especialmente nas mentes jovens e impressionáveis.
Já podemos prever o próximo passo: a imposição da exibição obrigatória desse filme em escolas e universidades, onde alunos serão forçados a absorver sua narrativa enviesada como se fosse verdade absoluta. Não haverá espaço para questionamentos ou reflexões críticas – aliás, criticar essa obra será, inevitavelmente, elevado à categoria de crime, uma afronta direta à liberdade de pensamento e expressão.
“Eu Ainda Estou Aqui” não é apenas um filme; é um símbolo do avanço silencioso de uma máquina ideológica que sufoca a diversidade de ideias e erode a autonomia individual. Lamentamos não só o prêmio, mas o que ele solidifica no Brasil: um futuro em que a arte, outrora refúgio da alma humana, se curva aos ditames de um regime que não tolera dissenso.
Que possamos, ao menos, manter acesa a chama da resistência intelectual diante dessa triste realidade.

O que a extrema direita classifica de “ideológico” no filme é a mais pura narrativa histórica. Documentos, livros e um rico acervo artístico-cultural, censurado na época, atestam a História do Brasil com seus 525 anos, indissociáveis dos 21 anos de Ditadura.
“Ainda estou aqui” não é um filme de esquerda. E nem se trata de aplaudir ou vaiar a primeira produção cinematográfica brasileira a abocanhar a estatueta mais cobiçada do cinema mundial. Mas de reconhecer que fatos, comprovados, documentados, atestados e reconhecidos publicamente, são acontecimentos legitimados pela verdade e não por um ponto de vista ou preferência política.