JORNALISTA EM CONSTRUÇÃO

A primeira experiência estética com Chico Buarque de Hollanda não lista entre os maiores prazeres da minha infância. Os versos de Pedro Pedreiro e Construção deflagravam tensão em minhas emoções pueris e algo desconhecido, mais próximo do que se poderia chamar de angústia, diante da ainda incipiente complexidade da minha personalidade.

Meu pai gostava de tomar uma cervejinha aos finais de semana, época de muito sacrifício para ele e minha mãe, que eram professores de Português, nos três turnos, em escolas públicas e privadas de São Luís, antes de ingressarem, por concurso público, na UFMA. Papai era um homem engraçado, piadista, um meninão, apaixonado por boa música. Eu era sua companheira de devaneios musicais, ouvindo atentamente cada interpretação dos versos de Chico feita por ele, sob o viés de um professor que amava a língua-mãe.

Fui “alfabetizada” assim. Em 1971, Chico Buarque compôs o álbum “Construção” e a música título, em plena vigência da Ditadura Militar. A letra é uma mescla de primor semântico e chute nos estômagos abastecidos por privilégios. Grande parte dos brasileiros ignorava as questões mais profundas da nossa escandalosa desigualdade social e poucos possuíam aquilo que se pode chamar de consciência de classe. Era um Brasil, de forma geral, ainda abobalhado, alienado, sem interesse em compreender, por exemplo, aspectos que estão entranhados em nossa formação cultural e social como o Samba, por exemplo: a maior manifestação da nossa identidade musical de alegria, feita por pretos, descendentes da dor dos escravizados. E, menos ainda, uma menina de 7 ou 8 anos de idade, escutando aqueles acordes melancólicos, que alternavam rimas, confeccionando a semântica riquíssima do filho de Seu Sérgio Buarque.

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpinteira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Chico traz a coisificação do homem para a letra da música como um Chaplin tupiniquim. E desconstrói, em sua Construção, com “cimento e lágrima”, o que seria de concreto. Escreve a crônica da miséria anestesiada pelos prazeres de instintos básicos da sobrevivência; grita dentro de nós sobre “paredes flácidas” para quem as constrói, porém, firmes para os bolsos mais abastados. O “príncipe”, o “náufrago”, o “lógico”, as paredes “mágicas”, depois “flácidas”. Quiçá o bêbado que “morreu na contramão atrapalhando o sábado” da elite econômica.

Meu pai faleceu em maio de 2017. Por motivos que não citarei, eu temia que fosse como o operário da Construção de Chico. Foi-se durante um sono. E me deixou os sonhos que ainda permanecem em mim. Era, conforme já disse em outro escrito, um “engenheiro da sintaxe”.

2 comments

  1. Que primor de texto. Seu pai de onde estiver, deve sentir muito orgulho de sua capacidade de interpretar situações, circunstâncias, egos e transmitir com fidelidade, sentimentos, emoções, verdades . Parabéns e que você continue sonhando , realizando e sendo feliz.

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