“Vou para a rua e bebo a tempestade” é outra frase do cancioneiro de Chico com poder de alucinar as palavras na definição de Manoel de Barros. São versos da música Bom Conselho:
“Ouça um bom conselho/Que eu lhe dou de graça/Inútil dormir, que a dor não passa”, diz o cantor, compositor e escritor de genialidade intransitiva. O autor de Estorvo prossegue com suas erupções linguísticas, utilizando termos incandescentes no trecho:
“Brinque com meu fogo. Venha se queimar. Faça como eu digo. Faça como eu faço. Aja duas vezes. Antes de pensar. Corro atrás do tempo. Vim de não sei onde. Devagar é que não se vai longe. Eu semeio o vento. Na minha cidade”.
A alquimia buarquiana mistura experiências, sensações mergulhadas numa poética própria de quem semeia o vento e bebe a tempestade. A ardência evoca a relação com a cidade.
Algumas cidades como São Paulo, onde já vivi, parecem trazer essa conexão urbana mais forte, como extensões do viver: frases em muros, poesia urbana, banheiros públicos, a arquitetura de rostos no metrô. No Rio, a beleza escandalizando os olhos, a conversão de ternos em sungas de banho, o comércio sexual de Copacabana e outros bairros, as sandálias havaianas como instituição carioca.

Chico deixou, inclusive, registros de depoimentos seus em documentários sobre o “flânerie“, conceito francês que se refere à prática de passear, sem objetivo de chegar a algum lugar, em um caminhar contemplativo e absorto. Durante muitos anos, fiz esse exercício pelo local onde sinto mais de perto a criação divina: na beira da praia. Lembro de um dia ter sido encontrada, sozinha, caminhando entre as praias do Meio e Olho d’Água, por duas amigas que passeavam de carro. Uma delas, Ana Cristina Cardoso, minha amiga da gargalhada mais generosa de toda uma geração, perguntou: “O que tu fazes aqui sozinha nesta praia?”. Eu prontamente respondi: “É que eu gosto muito de caminhar sozinha para conversar comigo mesma, tenho conversas profundas com as diversas Flávias que habitam em mim”. Com o sorriso largo, Aninha se despediu, respondendo: “Então, tá bom. Um ótimo passeio pra vocês todas!”.
Neste momento, ir para a rua e “beber a tempestade” pode deflagar as mesmas sensações de As Vitrines:
“Eu te vejo sumir por aí/Te avisei que a cidade era um vão/ Dá tua mão, olha pra mim/ Não faz assim, não vai lá, não/ Os letreiros a te colorir/Embaraçam a minha visão”.
A angústia se mistura aos versos, a rua devorando os melhores sonhos, engolindo bêbados de tempestade. A dor dos acordes com ecos profundos.
Foto de capa: reprodução de pintura “noite estrelada” de Van Gogh