CHICO COM SAL A GOSTO

O facho de luz deixado pelo fotógrafo Sebastião Salgado ainda reverbera até hoje, em artigos, vídeos, cadernos de Cultura e no ambiente digital das redes sociais. Em um de seus projetos, de 1987, o livro “Terra”, reunindo 109 fotografias, Chico Buarque teve encartado um CD compacto, com duas músicas inéditas “Levantados do Chão” e “Assentamento”, além de novas versões de “Fantasia” e “Brejo da Cruz”. Os direitos autorais sobre a publicação, editada no Brasil pela Companhia das Letras, foram doados para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“Brejo na Cruz” é uma explosão literária, com os recursos de uma escrita de cunho social que rasga o tom panfletário e busca na poesia um desenho significativo profundo, por vezes, traduzível apenas ao próprio Buarque.

O letrista genial nos faz ver uma “criançada se alimentar de luz”, “meninos ficando azuis”. “Uns vendem fumo. Tem uns que viram Jesus”. Chico escreve com cheiro de gente, de terra. É um narrador de um Brasil único. Ele conta que “há milhões desses seres/que se disfarçam tão bem/que ninguém pergunta/de onde essa gente vem”. “São jardineiros, guardas-noturnos, casais, são passageiros, bombeiros e babás”

“Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz, que eram crianças. E que comiam luz”. Ele canta a esperança perdida, a luz apagada no final do túnel.

O CD compacto com músicas de Chico Buarque encartado em livros de fotografias de Sebastião Salgado

Gente é a matéria-prima fundamental de um compositor que tece a bandeira brasileira com a agulha fina da justiça social escassa, bordando as amarguras e os sonhos esquecidos na infância.

“São faxineiros. Balançam nas construções. São bilheteiras. Baleiros e garçons. Já nem se lembram. Que existe um Brejo da Cruz. Que eram crianças. E que comiam luz”, diz a letra.

“Uns atiram pedra. Outros passeiam nus”.

Chico Buarque faz um roteiro cinematográfico de uma realidade social nua, crua e cruel que pulsa nas ruas. Crianças, mendigos, vazios, farrapos humanos. Surge na memória a minha Rua da Saúde e seu entorno adoecido, o meu Mercado Central, os “dentes cariados da alegria” das meninas vendendo sexo no Oscar Frota, os papelões servindo de colchão nas vielas abertas jorrando a miséria pelos esgotos da indiferença pública.

Só um gênio escreveria (e descreveria) toda uma escrotidão social com tinta de luz como fez Salgado com a fotografia. Lembro de Alice Pires Van Deursen, com sua abominação completa aos termos chulos e palavrões, todas as vezes em que a indignação me toma de assalto.

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